Bebês com maior desempenho intelectual
Exercício físico durante a gestação e a infância tem efeitos duradouros no desempenho intelectual
Se você quer aumentar as chances de seus filhos terem um bom desempenho intelectual e profissional, a pior coisa que pode fazer é substituir radicalmente exercício físico por tempo de estudo na cadeira. Mais do que isso, o ideal é a mãe ter suado a camisa desde a gestação, de acordo com o neurocientista Sérgio Gomes da Silva, pesquisador do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, em São Paulo.
Gomes da Silva usa ratos como modelo de pesquisa para entender os efeitos da atividade física no desenvolvimento do cérebro. Nos resultados mais recentes, publicados em janeiro na revista PLoS One, ele e colaboradores mostram que filhotes de roedoras que se exercitaram numa esteira durante a gestação têm o hipocampo turbinado. Neles, essa região do cérebro especialmente envolvida com funções ligadas a memória, aprendizado e emoções apresenta mais células e mais fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), uma proteína que regula processos de proliferação, desenvolvimento e diferenciação das células cerebrais. Longe de ser apenas detectada nas minúcias celulares, essa diferença se revela também no comportamento, como em testes que avaliam a velocidade com que o animal aprende a reconhecer um território experimental. Numa arena em que o ratinho precisava memorizar pontos de referência, os filhotes das mães de academia aprendiam mais rapidamente. “Os índices de inteligência são melhores”, conta o pesquisador.
Em trabalhos anteriores feitos em colaboração com Ricardo Mario Arida, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em cujo laboratório Gomes da Silva fez doutorado e pós-doutorado, ele já tinha mostrado que o exercício físico na adolescência deixava os ratos mais espertos. Em testes de memória espacial feitos em pequenas piscinas nas quais os animais aprendem a encontrar uma plataforma submersa onde possam se apoiar, os roedores que tinham seguido um programa de exercícios se saíam melhor, de acordo com artigo publicado em 2012 na revista Hippocampus. O responsável aí também parece ser o BDNF, que aparece em maior quantidade e supostamente contribui para a formação de fibras nas células do hipocampo que melhoram o desempenho dessa região do cérebro. Além disso, de acordo com o pesquisador, esses animais também têm mais interneurônios, células que permitem cancelar informações irrelevantes no ambiente e concentrar-se em alguma tarefa. Numa analogia com uma situação humana, trata-se da capacidade de estudar sem prestar atenção na televisão ligada ou na pressão da cadeira nas costas.
O mais importante é que esse efeito se mantém na idade adulta, no caso dos ratos. “Quando alguém para de fazer exercício físico, logo perde massa muscular”, compara Gomes da Silva. “Mostramos que com o cérebro é diferente: se ele foi formado de maneira enriquecida, as alterações no desenvolvimento causadas durante a infância se mantêm pela vida toda.” Faz sentido, porque o cérebro não nasce pronto. No caso humano o órgão, que tem um peso por volta de 300 gramas ao nascimento, só chega a seu tamanho final de 1,5 quilograma no final da adolescência.
O neurocientista também encontrou sinais de benefícios duradouros da atividade física na infância em testes de epilepsia induzida. Em artigo publicado em 2011 na revista International Journal of Developmental Neuroscience, ele mostrou que um grupo de 14 ratos que seguiu um programa de exercícios na esteira durante a infância e adolescência teve convulsões muito mais leves ao receber injeções de uma substância indutora, em relação aos 14 companheiros que levaram uma vida mais preguiçosa. O achado se encaixa na hipótese da reserva neural, que postula que o maior número de células resultante da formação do cérebro nessas condições enriquecidas gera estruturas mais complexas e versáteis. Se uma parte dos neurônios falha, há outros que podem assumir as funções e corrigir o erro.
Do rato ao homem
A grande conquista desse trabalho veio em 2013. Naquele ano, Gomes da Silva viu seu artigo mencionado num estudo sueco liderado por Jenny Nyberg, da Universidade de Gotemburgo, mostrando que o exercício físico na adolescência resulta numa proteção contra epilepsia pelo resto da vida. Nesse caso, se tratava de uma grande população de seres humanos. “Meu estudo com 28 ratos encontrou eco em um grupo de mais de 1 milhão de pessoas”, diz. O grupo sueco tirou proveito de dados de alistamento militar entre 1968 e 2015 e avaliou as fichas médicas dessa população – no caso dos mais velhos, foi um acompanhamento de até 40 anos. Os resultados mostraram que um mau condicionamento físico aos 18 anos estava relacionado com um risco maior de epilepsia na idade adulta, e também que a boa forma tem um efeito protetor duradouro contra morte prematura, doenças cardiovasculares, depressão e diabetes.
Para Jenny, esses resultados – e outros – são um indício convincente de que o exercício físico ajuda a formar um cérebro mais plástico e robusto, tanto em animais como em seres humanos. Para ela, a complementaridade entre estudos com pessoas e cobaias tem se mostrado produtiva. “Os mecanismos e processos fisiológicos são muito mais difíceis de estudar em seres humanos”, conta. “Nos animais podemos olhar o cérebro e ver o que de fato acontece e ter uma compreensão do porquê de a atividade física ser positiva para a saúde do cérebro.” Seu grupo também detectou uma correlação entre um mau desempenho físico e cognitivo aos 18 anos e a ocorrência de demência precoce, conforme mostra artigo publicado em 2014 na revista Brain.
No Brasil, indícios da semelhança entre os resultados com roedores e o que acontece com pessoas vêm do trabalho do educador físico Marlos Domingues, da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Ele tirou proveito de estudos de acompanhamento de longo prazo feitos nessa cidade gaúcha para avaliar os efeitos da atividade física durante a gestação no desenvolvimento neurológico dos fetos.
Em um acompanhamento feito com quase 4 mil bebês nascidos em 2004, o grupo mostrou um melhor desempenho de filhos de mães ativas em testes cognitivos ao longo do primeiro ano de vida, uma diferença observada sobretudo nos meninos. Nos anos seguintes, o efeito gradualmente se perdeu, de acordo com artigo publicado em 2014 na PLoS One. “A partir dessa idade, outros fatores ambientais começam a influenciar”, explica Domingues. Nos seres humanos, uma imensa gama de fatores ambientais pode afetar o desenvolvimento cognitivo, como interações sociais e o acesso à leitura. Por isso, o pesquisador defende que a escolaridade da mãe influencia o QI dos filhos, além de ser associada à prática esportiva, em sua experiência. Essa dificuldade de destrinchar os fatores em humanos evidencia a importância dos estudos com roedores. “Nos ratos não há diferença de escolaridade”, brinca.
O pesquisador gaúcho não descarta, porém, efeitos no longo prazo. “Daqui a 30 anos pode haver uma diferença”, especula, em consonância com o que Gomes da Silva tem observado nos ratos adultos. Embora os pesquisadores de Pelotas monitorem a população do município gaúcho desde os anos 1980, só em 2004 eles questionaram as mães sobre a prática de atividade física durante a gravidez. Mesmo assim foi uma avaliação bastante superficial, baseada em questionário respondido depois que já tinham dado à luz. “Em 2015 coletamos uma informação mais qualificada, com medições em acelerômetros durante a gestação”, conta. Só daqui a alguns anos será possível saber se dessa maneira se detectará um sinal mais forte dos benefícios dessa prática de exercícios.
Distinção de gênero
A diferença entre meninos e meninas sugerida pelo estudo de Pelotas também foi detectada no estudo liderado por Irene Esteban-Cornejo, da Universidade de Madri, na Espanha, que analisou quase 2 mil crianças entre 6 e 18 anos de idade. Os resultados, publicados este ano na revista The Journal of Maternal-Fetal & Neonatal Medicine, mostram que mães fisicamente ativas têm filhos que se saem melhor na escola de acordo com vários índices de desempenho, inclusive em linguagem e matemática – mesmo que as próprias crianças não sigam o padrão de atividade das mães. O efeito se mostrou melhor se o exercício é uma prática anterior à gravidez e se mantém ao longo dela: não basta correr para a academia quando o teste dá positivo. Nas meninas, o mesmo efeito não parece acontecer. Ainda não se sabe exatamente a razão, mas a explicação mais aceita parece ser que elas já têm o cérebro naturalmente mais turbinado em termos de células e conexões, e por isso os benefícios ambientais encontram pouco espaço para contribuir.
Sérgio Gomes da Silva alerta para a importância do conhecimento que se desenha a partir desses estudos no sentido de orientar as práticas escolares. “Por lei, as escolas brasileiras precisam oferecer atividade física duas horas por semana”, diz, “mas a Organização Mundial da Saúde recomenda uma hora todos os dias para adolescentes, que pode ser dividida em duas sessões”. É provável que o equilíbrio entre exercício e leitura precise ser revisto pelas escolas e famílias, se o objetivo é o bom aprendizado e o sucesso profissional futuro.
Fonte: revistapesquisa.fapesp.br/2016/05/19/movimento-pelo-cerebro/?cat=ciencia